domingo, 29 de agosto de 2010

tradição

"O mar azul e branco e as luzidias
Pedras - O arfado espaço

Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo

Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida."
(Sophia de Mello Breyner)

el secreto

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

barreira

"O mais sólido e mais duradouro traço de união entre os seres é a barreira"
(Pierre Reverdy)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

domingo, 22 de agosto de 2010

sem corrimão

"É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão.

Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos, nem sobressaltos
servem sequer de lição.

Quem tem medo não a sobe
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração.

Sobe-se numa corrida.
Correm-se p'rigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão."

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

pergunta


"Pergunta às árvores da rua
que notícia têm desse dia
filtrado em betume da noite;
se por acaso pressentiram
nas aragens conversadeiras,
ágil correio do universo,
um calar mais informativo
que toda grave confissão.

Pergunta aos pássaros, cativos
do sol e do espaço, que viram
ou bicaram de mais estranho,
seja na pele das estradas Alinhar ao centro
seja entre volumes suspensos
nas prateleiras do ar, ou mesmo
sobre a palma da mão de velhos
profissionais de solidão.

Pergunta às coisas, impregnadas
de sono que precede a vida
e a consuma, sem que a vigília
intermédia as liberte e faça
conhecedoras de si mesmas,
que prisma, que diamante fluido
concentra mil fogos humanos
onde era ruga e cinza e não.

Pergunta aos hortos que segredo
de clepsidra, areia e carocha
se foi desenrolando, lento,
no calado rumo do infante
a divagar por entre símbolos
de símbolos outros, primeiros,
e tão acessíveis aos pobres
como a breve casca do pão.

Pergunta ao que, não sendo, resta
perfilado à porta do tempo,
aguardando vez de possível;
pergunta ao vago, sem propósito
de captar maiores certezas
além da vaporosa calma
que uma presença imaginária
dá aos quartos do coração. "

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Vida Passada a Limpo'

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

arrumar

"Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra..."


(Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

domingo, 15 de agosto de 2010

a verdadeira generosidade

"Observo em nós apenas uma única coisa que nos pode dar justa razão para nos estimarmos, a saber: o uso do nosso livre-arbítrio e o domínio que temos sobre as nossas vontades. Pois as acções que dependem desse livre-arbítrio são as únicas pelas quais podemos com razão ser louvados ou censurados, e ele torna-nos de alguma forma semelhante a Deus ao fazer-nos senhores de nós mesmos, desde que por cobardia não percamos os direitos que nos dá.
Assim, creio que a verdadeira generosidade, que faz um homem estimar-se a si mesmo no mais alto grau em que pode legitimamente estimar-se, consiste somente, por uma parte, em que ele sabe que não há algo que realmente lhe pertença a não ser essa livre disposição das suas vontades, nem por que ele deva ser louvado ou censurado a não ser porque faz bom ou mau uso dela; e, por outra parte, em que ele sente em si mesmo uma firme e constante resolução de fazer bom uso dela, isto é, de nunca deixar de ter vontade para empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores. Isso é seguir perfeitamente a virtude.

Nota: O latim generosus designa o homem ou animal que é de boa raça. Portanto, «generoso» é antes de tudo aquele que é de raça nobre e, no sentido figurado ou moral, aquele que demonstra grandeza de alma."


(René Descartes, in 'As Paixões da Alma')

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

sombra

"Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como os amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca"

(Pena Capital, Mário Cesariny)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

domingo, 8 de agosto de 2010

gota de tempo


"Tudo o que houve, permanece, proeza do corpo
como um sulco bárbaro da memória dos dias,
ritos, remorsos, sementes futuras, a mudez.
Tudo aconteceu nas lágrimas e nas veias,

na precisão das luzes, no lugar móvel da ordem,
no gelo e no lume que entre as coisas navegam,
na palavra deflagrada, na paz das páginas.
Para onde vai o que não se move, o que é

dogma de cal, madeira, pedra ou ferro?
Como chamar à alma, à linguagem, às cores
que de amor pela morte morrem caladas,

na área eterna da casa, a que permanece
na velhice dos anos e dos ossos consumada,
como uma gota do tempo para além dos séculos?"

(Orlando Neves, in "Decomposição - a Casa")

sábado, 7 de agosto de 2010

silent message

"Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir. Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto(..), sem que vejamos mais no que compreendemos senão a forma exacta como foi exposto (..)cansamo-nos de pensar"
(Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego")

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

a água


"No café trazem-me um copo com água como se ele resolvesse todos os meus problemas. É ridículo — penso — não há saída. No entanto, depois de beber a água fico sem sede. E a sensação exclusiva do organismo acalma-me por momentos. Como eles sabem de filosofia — penso — e regresso, logo a seguir, à angústia."
(Gonçalo M Tavares)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

a ironia da escolha

"O prazer - um dos mais autênticos - de apreender que alguém está forçado a escolher, que não pode ter duas coisas ao mesmo tempo. É um sinal do carácter trágico da vida, que consiste no facto de um valor não se conciliar com outro. Consequência: renunciaste a muitas coisas para ter uma só(..) Aqui vem a propósito a pureza do coração, a humildade, a aceitação do mundo de Deus."

(Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver')

terça-feira, 3 de agosto de 2010

domingo, 1 de agosto de 2010

horizonte

"O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade."
(Fernando Pessoa)