segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Poema dum funcionário cansado

"A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passoas casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só"
(António Ramos Rosa)

As casas "engolem-nos", mas os sonhos trocados ou nao, existem.

2 comentários:

João Almeida disse...

Este poema marca a desilusão de Ramos Rosa com a vida de escriturário que tinha em Lisboa.
Pouco depois viria a dedicar-se, em exclusividade, ao seu maior sonho, a escrita, a qual ainda hoje se dedica de corpo e alma inteiros.

Obrigado

apricare disse...

é o lutar pelo sonho e este ser atingido?! uau. Parabéns!